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"Educar com amor".

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Um cantinho especial para uma boa e agradável conversa!!!

terça-feira, 3 de julho de 2012

Rainha de Copas.

Somente quem sentiu a dor de uma injustiça, sabe que diferença o homem pode fazer no mundo.

As cortinas foram abertas. No dia da audição, as crianças estavam todas prontas para interpretar Alice no país das Maravilhas. Todas as meninas queriam ser Alice e os meninos queriam ser o coelho branco, ou o rato, ou o Dodo. Todos queriam ser protagonistas. Não poderia ser diferente, são os protagonistas que conduzem a história; os livros são vendidos porque existe um protagonista; a vida na ficção é feita de mocinhos e mocinhas.
Com certeza, a professora não estranhara o fato de todas as crianças preferirem os papéis de destaque, tão certo, que sempre que uma vinha lhe mostrar suas aptidões no palco, durante a audição, ela já tinha em mãos uma cópia das falas de Alice. Alice era irrepreensível, era de um coração ingênuo, conquistava todos a sua volta. Quem não gostaria de ser Alice?

Júlio, um garoto de oito anos aproximadamente, decidiu participar também da audição. Mais uma vez, a professora já tinha em mãos o papel de um dos protagonistas. Quando ela lhe perguntou se ele queria o papel do coelho, ou do rato, ou mesmo de Dodo, ele lhe respondeu:

– Eu quero ser a Rainha de Copas!

A professora não o questionou, entregou-lhe as falas da personagem, e avaliou a sua interpretação. Passados alguns dias, saíram os resultados para as crianças que se inscreveram na audição. O alvoroço era imenso, afinal, quem ficou com o papel de Alice e dos demais personagens de destaque? Como não havia possibilidade de nenhuma criança ficar fora do espetáculo; aqueles que não obtiveram os papéis principais receberiam as falas de outros personagens da história com atuações menores, mas extremamente fundamentais para a composição dos cenários.
Um a um, a professora foi entregando o personagem. Alice acabou ficando com uma menina autista que estudava na escola. Com certeza, as outras meninas acharam uma tremenda injustiça. A menina mal conseguia se relacionar como poderia ser a tão bela e doce protagonista? Interpretando ela era fantástica...
O pior ainda aconteceria, a professora cedeu o papel da Rainha de Copas a Júlio. O menino ficou emocionado e a professora o elogiou a exaustão, porque de todas as vezes que sugeriu a interpretação da história, nunca teve alguém que interpretasse a Rainha como Júlio. Quando foi anunciado o seu resultado, as demais crianças quase desfaleceram de tanto rirem. Um menino fazendo papel de menina, ele deveria ter se candidatado a Alice – diziam eles.
O estopim aconteceu quando no ensaio, escreveram na capa da Rainha: “viado”, assim mesmo, com erro de grafia. A professora interrompeu o ensaio e chamou as crianças ao centro do palco.

– Eu quero saber quem foi que escreveu essa palavra na capa da Rainha de Copas? –

perguntou a professora.

Nenhuma criança se acusou. Então, a professora continuou, fazendo-lhes outra pergunta:

– Já que ninguém tem coragem de se assumir, não com a mesma coragem que teve para escrever essa palavra no figurino do meu espetáculo, quero saber se alguém pode me dizer o significado dessa palavra? – apontando para a capa.

Mais uma vez nenhuma criança disse nada, sequer esboçaram algum riso.

– Foi o que pensei. Por favor, alguém pegue o dicionário para mim. – uma das crianças se levantou e atendeu ao pedido da professora. Ela abriu o dicionário e o leu para os alunos:

– Bom, vejamos... “Viado” não existe, existe veado. Veado é um tecido de lã com riscas ou veios. Também é a designação comum a mamíferos ruminantes da família dos cervídeos, de coloração geralmente baia ou amarronzada, cornos ramificados ou simples, presentes apenas nos machos de pata com quatro dedos, pernas longas e cauda curta. Mesmo que suaçu. Então, a educadora perguntou:

– Por acaso, é isso que a Rainha de Copas representa? Por acaso, é isso que o amiguinho de vocês significa?

Eu quero contar uma história a vocês. No passado, num tempo muito distante, as mulheres não podiam participar do teatro. Elas eram totalmente impedidas pela sociedade, pelos maridos, e pela família. As mulheres não podiam trabalhar, muito menos, trabalhar com arte, e na possibilidade de se colocar numa cena mais envolvente com outro homem. Não existia atriz, sempre existiu ator. Então, no passado, o ator precisava fazer todos os papéis. Ele deveria ser a mãe, a avó, a criança, o soldado, a princesa, a rainha, a amante, o esposo, o animalzinho, o vendedor e qualquer outro papel que lhe fosse entregue. Ser bom ator significava poder interpretar com maestria quaisquer personagens, não importava se homem, mulher ou animal. Quem já ouviu falar em Romeu e Julieta? – quase a totalidade das crianças levantou as mãos. Eu quero dizer que na época de Shakespeare, as palavras de amor trocadas pelos namorados, foram originalmente faladas por dois homens no palco. Eu quero dizer que no teatro não existe papel errado, pequeno, ou inferior, ou menos importante. O que existe são atores pequenos e de pensamentos inferiores ou menos importantes.
As crianças não mais debocharam do menino. Os ensaios continuaram e o espetáculo foi apresentado, e na divisão do palco, houve uma disputa pela atenção do público entre Alice, a protagonista, e a Rainha. A interpretação de ambos foi maravilhosa. A interpretação de Júlio foi tão intensa, que não teve quem não dissesse se tratar de uma rainha, Rainha de Copas. A menina autista foi extremamente aplaudida, e quando as crianças saudaram o público ao final do espetáculo, Júlio retirou a coroa e a peruca, e o público tomou um susto, pois viram se tratar de um menino.
O público ficou emudecido e no ensejo, a professora chamou ambos ao centro do palco. A menina autista e sem autoestima por não se relacionar com os amigos, e o menino que no palco quis o papel, originalmente, feito para ser interpretado por uma menina. A professora mostrou ao público a importância do teatro na vida das crianças, e das possibilidades que o espetáculo lhes trazia. Por exemplo, vencer os preconceitos encontrados no dia a dia.
Mais do que isso, quando a professora cedeu a palavra a Júlio, ela perguntou o que o fez desejar o papel da rainha? Ele sem a maturidade necessária para entender o teor da sua atitude, nem de suas palavras, contou a todos o que ele sentia:
– Sabe o que é eu nunca gostei muito de ler estórias que só tivesse no centro uma mocinha ou um mocinho, eu sempre gostei do vilão. O vilão é o mais legal, porque ele é sempre o culpado, ele sempre faz tudo errado. Se não tivesse o vilão, não teria o mocinho, ou então, o mocinho só é o mocinho, porque tem o vilão. Eu quis ser a rainha, porque ela manda cortar a cabeça, ela burla as regras, e todos precisam obedecê-la. Ela nunca é a culpada, ela é sempre a rainha. Na escola, as outras crianças riem de mim, me xingam, e dizem que eu sou menina; mas no palco, quando eu sou a rainha, elas são obrigadas a me obedecerem, e elas não mais me xingam, porque senão eu mando cortar a cabeça delas. Na escola, eu sempre sou maltratado, sou sempre o culpado, mas no teatro, eu estou no centro, sou sempre eu mesmo, aquele que importa para haver a mocinha, eu sou a rainha.
De repente, alguém começou a aplaudi-lo, outro bater de palmas se ouviu, e contagiou a todos os presentes naquele espetáculo; rapidamente, um coro de palmas se ouviu e, desta vez, não era a Rainha, mas Júlio era verdadeiramente aplaudido.
Novamente no ensejo, a professora aproveitou o período após as palmas, para trazer

uma reflexão a todos:

– É verdade que muito se fala em educação, em medidas socioeducativas, mas pouco se pensa na questão do ser humano. Todos falam que educação é importante, mas poucos entendem o teor daquilo que dizem. A educação é importante porque antes de tudo ajuda a enxergar o ser humano e ampliar as possibilidades dele com responsabilidade. Educação também é responsabilidade dos pais, aliás, é responsabilidade de todos. Eu trabalho com crianças e sei que nenhuma delas nasceu com disposição ao ódio, com horror as diferenças, e medo daquilo que não lhes é igual. Quando vejo crianças sendo maltratadas na escola como o menino Júlio, eu sei que outras o maltratam, porque aprenderam de alguém, e não foi no meu palco, nem no meu quadro negro, muito menos, a partir do meu giz. Mas elas aprenderam e absorveram a ideia de ódio de alguém. Uma criança de oito anos de idade ou mais, não tem maldade, muito menos sabe escolher se gosta de menino ou menina; o que uma criança de oito anos ou mais gosta mesmo é de ser criança, só isso. Peço encarecidamente, que quando vocês falarem em seu âmbito familiar o quanto não gostam das diferenças, ou aquilo que consideram certo ou errado em relação às pessoas, peço que olhem o ser humano, e saibam que uma criança está a ouvir o que vocês dizem.

E as cortinas do palco se fecharam, e a Rainha de Copas voltou ao seu trono, imaculada.



Créditos: Emannuel Baldavir.

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